Entrevista: Kleber Mendonça Filho

Kleber Mendonça Filho afina a direção

Gianfrancesco Mello
Fotos Divulgação

Kleber Mendonça Filho

Com base em todo o sucesso que o longa “O som ao redor”, do diretor e roteirista Kleber Mendonça Filho, está fazendo pelo Brasil, a Agenda Cultural do Recife fez um bate-papo sobre esse fenômeno singular do cenário audiovisual brasileiro. Antes do longa, o cineasta e crítico de cinema já havia dirigido quatro curtas-metragens: A menina do algodão (2002), Vinil verde (2004), Eletrodoméstica (2005) e Recife frio (2009), e um longa documentário – Crítico (2008). “O som ao redor” retrata a rotina de uma rua de classe média na Zona Sul do Recife, transformada pela chegada de seguranças particulares que oferecem seus serviços aos moradores. Nesse pequeno espaço, Mendonça Filho faz um retrato de uma cidade e de um País em transformação, no qual o crescimento não reduz o medo e onde as relações de classe se parecem com as do passado. Não por acaso, o diretor parece totalmente à vontade ao falar sobre o tema: a rua do filme é a que ele mora, a paranoia da insegurança também já foi dele e até o cachorro que enlouquece Bia, uma das personagens, tem paralelo na vida real. Há anos Mendonça Filho sofre com os latidos do weimaraner do vizinho. “Todos os filmes que fiz são extremamente pessoais e sobre coisas das quais acho que entendo”, afirma. O longa foi incluído na lista dos dez melhores filmes do ano do jornal americano The New York Times. Diante desse histórico, ele falou sobre como nasceu a ideia de “O som ao redor”.

Cena de O Som ao Redor
Agenda Cultural do Recife – Como foi a elaboração de “O som ao redor”?

Kleber Mendonça Filho – Há algum tempo, comentei com amigos que tinha vontade de fazer num filme a transposição de um engenho de cana-de-açúcar, algo muito forte aqui em Pernambuco e também no Brasil, para uma rua de cidade moderna, no caso, o Recife. Eu sabia que, se mostrasse direitinho, iria aparecer aquele engenho, com as casas dos vassalos, a casa-grande representada por um apartamento de cobertura habitado por um autêntico senhor de engenho, os empregados, os subalternos, os capatazes e os jagunços. Também me empolguei a contrabandear elementos de western para dentro do filme. Quando estreamos no Festival de Roterdã – em janeiro de 2012 –, já apareceu uma crítica percebendo a relação com o faroeste. Fiquei um ano e quatro meses na montagem desse filme. Passei por todas as fases tradicionais como, por exemplo, ficar oito meses achando que não daria certo. Em junho de 2011, o filme deu um clique. É como se você estivesse montando um quebra-cabeça e finalmente acha a peça certa. Ainda tive seis meses para apertar todos os parafusos.


Cena de O Som ao Redor
ACR – Então, a ideia é mostrar uma nova pirâmide social?

KMF – Sempre tivemos líderes do mesmo molde, ou seja, todos brancos, vindos do Sul ou Sudeste do País, ou originários de dinastias políticas conhecidas e estabelecidas, e que passaram por universidades estrangeiras. Todos sempre da elite política do Brasil, e quase sempre muito ruins. Então veio Lula, com perfil completamente diferente, da classe trabalhadora, sem a educação associada à elite, e sendo um cara do Nordeste. Sem entrar em questões políticas aqui, é inegável que o Lula trouxe uma cara nova à ideia de poder no Brasil, algo muito forte especialmente para as classes mais baixas. Muita coisa mudou nos últimos 12 anos em relação ao comportamento dos mais pobres diante dos ricos e poderosos. Não só em relação ao poder aquisitivo, já que tem mais gente ativa na sociedade capitalista, mas também na autoestima e no comportamento. Tudo isso está em O som ao redor, em personagens que, vindos das classes mais baixas, nunca baixam a cabeça. O som ao redor é um filme completamente diferente. É um filme sobre a sociedade brasileira, mas não quero que isso soe presunçoso. É uma observação pessoal de alguém que vive em um bairro e que está atento a questões muito peculiares do Brasil e da sociedade brasileira. É também um filme de um cineasta que queria fazer um longa realista e, ao mesmo tempo, não tinha paciência para fazer um filme 100% realista, porque acha que o realismo 100% é chato. Penso que, se é um bom filme, as pessoas vão vê-lo e, no final, saberão tirar as suas próprias conclusões. O filme não critica, mostra.

O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho
ACR – O filme estreou no ano passo em Roterdã. Qual o motivo de ser lá?

KMF – Esse projeto ganhou o Script Development Funding, do Hubert Balls, e esse prêmio nos abriu muitas portas e permitiu que conseguíssemos financiamento para produzir o filme. A Petrobras, o Estado de Pernambuco e o Ministério da Cultura também resolveram nos apoiar depois disso. Roterdã foi a primeira bandeira verde para o filme e, desde que ganhamos o prêmio, o Hubert Balls acompanhou o desenvolvimento do filme.

ACR – Podemos perceber uma certa apreensão durante o filme, como você teve a ideia de atingir essa sensação?

KMF – As situações são normais e mundanas, mas os enquadramentos e o tratamento do material não são. Filmar algo naturalista, como um personagem caminhando até a praia, dentro de uma concepção de cinema, seja lá o que for isso, é outra coisa. Não existe um manual de instruções para o que eu chamo “filme de cinema”, então segui meus instintos. O medo faz parte da vida da gente e é muito cinematográfico. E o filme risca uma linha no chão em relação ao fantástico e não a ultrapassa. O filme tinha muitos personagens e não queria que parecesse que havia um plano por trás daquilo tudo. Ele precisava parecer muito orgânico, que a história mudasse de uma pessoa para outra mantendo o interesse e sem parecer arbitrário. Esse foi o grande desafio, pois existe todo um histórico de filmes coral, onde várias coisas acontecem e há múltiplos personagens. Achar essa organicidade era o grande ponto e eu tradicionalmente demoro na montagem dos meus filmes, até nos curtas isso acontecia.

ACR – Você esperava tanta receptividade?

KMF – Fomos para Roterdã pensando em como iria se sair um filme sobre a minha rua e ele foi dando cambalhotas no ar. O filme fala do medo da sociedade ocidental. Percebi que não era uma coisa só do Recife, isto é, o medo do outro é universal. Claro que, quando estreamos no Brasil – na competição do Festival de Gramado, em agosto do ano passado –, o filme se desmembrou em outra camada, porque estávamos aqui no nosso território e alguns elementos são mais bem decodificados pelos brasileiros. O trabalho precisa ser forte o suficiente para se sustentar e essa é a melhor publicidade que o filme pode ter.

Kleber Mendonça Filho
ACR – Ser crítico de cinema ajudou na concepção de O som ao redor?

KMF – A ideia que mais me movia era a de que eu queria fazer algo que eu mesmo gostaria de ver. Porque esse tipo de abordagem não tem sido muito frequente não só no Brasil, mas no mundo: um filme sobre uma rua, com sotaque local. Assistir a muita coisa e ter uma consciência de cinema – de conhecer, de identificar a linguagem, de saber o que já foi feito antes de mim – me levou a fazer O som ao redor sem estar às cegas.

ACR – Já tem algum novo projeto em mente?

KMF – Estou a escrever um guia para um filme que possivelmente será de terror e ficção científica. Mas é um filme que, na verdade, fala na forma como o cinema representa as pessoas. É algo que me toca profundamente, porque a forma como as pessoas são representadas é uma questão muito importante para mim e um problema grave no Brasil.

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