Henrique Annes


Músico autodidata e precoce, virtuoso do violão – instrumento tão íntimo aos brasileiros –, esse recifense construiu uma sólida carreira que está agora completando 50 anos. Sério e compenetrado, Henrique Annes conversou em seu apartamento com Felipe Mendes e contou um pouco da sua história de menino curioso com a música a jovem prodígio do rádio, transformando-se em respeitado professor e instrumentista ovacionado. Com o violão a tiracolo, o mestre ainda ilustrou suas histórias tocando diferentes peças que fizeram e fazem parte de sua caminhada musical.


Até que ponto sua realidade familiar influenciou o caminho que você trilhou como músico?
Meus pais deram apoio total, mas o início de tudo isso se deu por causa de um tio meu, irmão de minha mãe, chamado Arnaldo Pedrosa. Ele tocava flauta dia de domingo na sala da casa dele e me lembro dele tocando Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Dante Santoro, Altamiro Carrilho, Pires Camargo, aquelas coisas de sopro. Quando eu tinha uns dez anos de idade meu tio perguntou porque eu ficava ali olhando ele tocar e eu disse que ficava admirando e queria tocar alguma coisa também. Ele me disse que flauta era muito difícil e sugeriu tocar um instrumento de corda, então me deu o cavaquinho do filho dele, Otávio, afinou e me mandou embora pra casa. Ele me deu também um método prático com acordes: Lá menor, Dó maior, etc. Em uma semana aprendi todos os tons, decorei tudo. A partir daí todo domingo eu batia minha peladinha e ia para lá passar com ele as músicas e aprendi assim o acompanhamento com o cavaquinho, que toquei por dois anos. Tocava Brasileirinho, Delicado, Doce de Coco, esses choros todos. Depois comecei a ir pra festinhas e sempre fui fortão, um pouco gordo, o cavaquinho era muito pequeno pra mim. Aí o pessoal começou a me gozar: “Mas rapaz você tão grandão com esse instrumentozinho. Por que não toca violão?”. A ideia foi ótima. Eu pedi a minha mãe e ela comprou um pra mim. No violão eu só tocava as quatro cordas de baixo, como se fosse um cavaquinho, mas com a prática, com os colegas ensinando, comecei a dedilhar. Meu pai me obrigava também a ouvir música clássica, eu tinha que ouvir as sinfonias de Beethoven, concertos para violino, Tchaikovsky, Mendelssohn...

Você iniciou sua carreira no rádio. Como chegou até lá?
Aos 14 anos eu morava em Jardim São Paulo, na Avenida São Paulo, 464, e toda noite passava um artista da Rádio Jornal do Commercio chamado Brivaldo Franklin, o famoso “Zé do Gato”, que parava para conversar com meu pai. Um dia ele perguntou a meu pai quem estava tocando violão dentro da casa e eles entraram para me ver. Eu ainda me lembro da música que estava tocando, Amourese, de Rodolpho Berger. Ele falou: “Esse menino é um gênio! Vamos levá-lo para a Rádio Jornal do Commercio”. Isso foi em 1960. Papai disse que não queria que eu tocasse no rádio, que era só para “consumo interno”, que eu iria me formar em direito ou veterinária... Mas Brivaldo insistiu e disse que ia falar com o produtor do programa, Nelson Pinto. O que sei é que em um domingo eu estava na Rádio Jornal do Commercio, na Rua do Imperador, às seis horas da noite, de paletó e gravata.
 
Como você enxerga o fato de ter sido um prodígio, alguém que começou a carreira tão cedo?
Eu achava uma coisa muito natural. Eu aprendi a ler lendo jornal, quando fui pra escola já era alfabetizado. Eu não tinha amizade com colegas da minha idade, sempre preferi os mais velhos para conversar melhor. Sempre fui assim, então é muito natural essa minha sensibilidade. E quando eu cheguei na Rádio Jornal do Commercio pela primeira vez, tinha um senhor sentado usando uns óculos fundo de garrafa. Era o lendário Romualdo Miranda, irmão de Luperce, Nelson e João Miranda. Ele perguntou o que eu iria tocar, então toquei Interrogando João Pernambuco [pega o violão e toca uma parte da peça]. Ele disse: “Não é possível! Você teve professor?”. Romualdo disse a meu pai que estava perplexo com meu talento, ele foi uma simpatia. Depois começaram a chegar outros músicos e aí apareceram Canhoto da Paraíba, Miro José, Ernani Reis, o cavaquinista Gérson Rosa. Eu não sentia nervoso nenhum nessa época, garoto que era ainda. Os outros músicos foram me deixando tocar no lugar deles e eu acabei tocando cinco músicas no programa. Foi um sucesso, me pediram para voltar no domingo seguinte e foi assim que eu tive a honra, o privilégio de conhecer os grandes mestres do violão popular de Pernambuco no rádio.

O que tem no violão para despertar em você essa afinidade tão grande?
Primeiramente é o timbre, o som do violão pra mim é extraordinário. E é um instrumento completo, polifônico. Isso me deixou muito ansioso, com o desejo de tocar mais. Depois que eu conheci o popular: choros, valsas, harmonização de música popular brasileira, na época Bossa Nova, um novo lumiar apareceu na minha vida. E um dia eu fui à casa de um amigo e ele me mostrou um violão que eu não conhecia: o violão clássico. Eu escutei um disco do famoso espanhol Andres Segovia e pensei: “Poxa vida, não sei nada de violão”. Aí eu tive que procurar um professor para estudar violão clássico aqui em Pernambuco. O primeiro foi Amaro Siqueira, que me abriu os olhos para aspectos da técnica. Ele só me deu aula por um ano por causa de um problema de saúde, mas já tinha dito que eu tinha que estudar teoria e solfejo, então eu fui para o Conservatório, na época tinha dezesseis anos. Lá estudei com Severino Revorêdo, grande mestre da teoria, trompetista da Sinfônica do Recife. Paralelamente eu estudava violão clássico com Júlio Moreira, que ainda é vivo e mora em São Paulo. Eu estudava dia e noite violão, pra mim só havia o violão, mas não abandonei o popular. A história do violão no Brasil está marcada no Nordeste, em Pernambuco. No século XIX, Quincas Laranjeira foi para o Rio de Janeiro ensinar violão clássico. Depois, no começo do século XX, João Pernambuco foi pra lá, todos esses violonistas daqui foram ensinar no Rio de Janeiro.

Como você se tornou professor de violão?
Um dia, na casa de Júlio Moreira, conheci o professor José Carrión, da Universidade Federal de Pernambuco, isso em 1975, 76. Carrión me pediu para tocar e eu toquei uma peça de Agustin Barrios, La Catedral [toca um trecho da composição]. O Carrión disse que eu iria estudar com ele na Escola de Belas Artes. Ficamos amigos e, sempre que eu estava meio embaralhado, o procurava para me ensinar as coisas, tirar minhas dúvidas. Foi um grande professor e grande marco na escola nordestina do violão. Ele fez inúmeros alunos, alguns foram morar fora, e eu fui assim um herdeiro, fiquei mais próximo dele. De dois em dois anos o conservatório faz um seminário em homenagem a ele, merecidamente. Eu estudei com vários professores, mas até hoje faço coisas que Carrión me ensinou. Depois estudei fora, fui aos Estados Unidos. Em 1979, o maestro Cussy de Almeida, que nessa época eu não conhecia, me viu tocando e disse: ”Garoto, você tem talento, quer trabalhar comigo?”. Ele disse que eu ia dar aula de violão, mas eu disse que não sabia dar aula de violão, então ele falou para eu continuar estudando e pedir aula de didática ao meu professor. Foi assim que comecei no Conservatório Pernambucano de Música com um curso livre de violão.

Em que momento dessa caminhada musical você começou a compor? E que importância tem esse processo de composição na sua relação com a música?
Eu sempre fui observador e estudioso. Eu analisava as obras dos compositores clássicos que eu tocava e ainda toco. Para analisar uma obra, é preciso que se tenha conhecimento, então eu comprei muitos livros, eu tenho ainda muitos livros, comecei a ler, a entender das coisas. E esses compositores me deram vários campos harmônicos. O Villa-Lobos, por exemplo, abriu minha cabeça totalmente. O violão clássico no Brasil começou de Villa-Lobos pra cá. Depois de ouvir tudo isso, essa confraria de músicos famosos, eu comecei a fazer as minhas músicas, a compor meus choros. Eu só comecei a compor depois de uns dez, quinze anos de violão. Ainda hoje componho, tenho vários discos gravados com composições minhas. Estou com um novo projeto de fazer um novo disco só com minhas músicas.

No seu caso a composição surge mais de um estalo instintivo ou do próprio repertório e técnica que você já tem?
Tudo isso é a somatória de muitos valores. Agora, a música, pra mim, vem de inspiração, eu não faço música como se fosse um arquiteto, que põe a partitura na prancheta e começa a fazer dois mais dois, essa frase vai pra baixo, essa pra cima, não faço nada disso. Eu faço tudo da minha cabeça, vem uma melodia, começo a desenvolver no violão e aí sai a música. Eu gravo e depois escrevo, para mais tarde ir melhorando aos poucos. É uma coisa continuada, vem da inspiração, do meu âmago, do meu sentido e do meu sentimento. Agora, quando quero fazer uma coisa mais clássica tenho que seguir regras, tem a forma da sonata, então vou naquele sistema...

Quando foi despertada em você a vontade de regravar, tocar e resgatar esses violonistas e obras para o violão que muitas vezes passam ao largo do conhecimento do grande público?
Eu estou resgatando a obra dos violonistas do passado que eu conheci e com quem convivi na casa do Mestre Sérgio, um senhor negro que tinha uma loja de ferragens ou marcenaria... Aos sábados, na frente da casa dele no bairro de São José, na Rua Augusta, se reuniam todos os músicos do Recife. A cadeira era frequentada por Canhoto, Romualdo Miranda, Nelson Miranda, Dona Çeça Conceição Dias, José do Carmo e outros. Eu conheci e frequentei esse ambiente dos 14 aos 16 anos. Em 1977, fui estudar em Campos do Jordão e lá eu conheci Turíbio Santos, grande violonista que eu já tinha visto algumas vezes tocando aqui no Recife. Eu fui fazer com ele masterclasses e ficamos amigos até hoje. Turíbio estava pesquisando os compositores populares e perguntou se eu tocava alguma coisa de João Pernambuco. Quando mostrei, ele disse que não conhecia o choro que eu estava tocando e eu expliquei que tinha aprendido de ouvido com Romualdo Miranda, que foi contemporâneo de João Pernambuco. Aí me deu um estalo e de uns anos pra cá eu comecei a pesquisar os violonistas do Recife, meus amigos. Eu consegui as fitas gravadas por uma grande figura humana chamada João Dias, do Cartório Pragana, gravações daqueles saraus. Comecei então a tocar aquelas músicas e a relembrar as músicas que eu tocava na Rádio Jornal do Commércio. Toquei em alguns concertos e consegui patrocínio de algumas empresas pra fazer esse trabalho. Agora eu estou resgatando toda essa obra através do Sesc que, em 2009, me convidou para o projeto Sonora Brasil. Eu fiz 87 concertos em três meses e dezesseis dias viajando. Eu mostrava Canhoto, Romualdo, Zé do Carmo, Aníbal Carneiro e outros, além das minhas músicas. Ofereci ao Sesc fazer uma editoração com as partituras pra deixar isso pra juventude, para o futuro, e eles toparam. Estou agora fazendo esse trabalho junto com um violonista que eu convidei, João Raone, que foi meu aluno e hoje é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 

 
Que balanço você faz da sua longa caminhada artística? Quais são os planos para os próximos 50 anos?
Eu realizei uma coisa na minha vida que é ter estudado nos Estados Unidos, fui três vezes tocar e estudar por lá. Estudei com um aluno de Segovia, John Sutherland. Outra coisa que aconteceu na minha vida foi ser professor do Conservatório Pernambucano de Música. Eu criei a cadeira de violão do Conservatório, que hoje tem inúmeros professores de violão. Eles querem me fazer uma homenagem em setembro pelos meus cinquenta anos de música. Outra coisa foi a oportunidade de tocar por todo esse Brasil, hoje sou conhecido nacionalmente. Eu sempre fui uma pessoa séria, nunca mexi no que era de ninguém. Não fiquei rico com a música e sempre sou convidado pelos melhores lugares para tocar. Mas eu fico muito triste com uma coisa aqui no Recife. Existe uma inversão de valores, aparece um negócio popular por aí tocando numa corda só, uma música de dois acordes, e o cara fica famoso. É uma coisa absurda. Agora, eu tenho amigos que me prestigiam e me convidam para fazer projetos, mas eu acho que mereceria muito mais, porque fiz muito pela música em Pernambuco. Fiz parte da Orquestra de Cordas Dedilhadas com o Cussy de Almeida, criei a Oficina de Cordas, com quem gravei vários discos. Muitos músicos aprenderam comigo e estão hoje no cenário nacional. Então acho que tinha que ser uma coisa mais elaborada. Em 1992, na gestão do prefeito Gilberto Marques Paulo, eu fui convidado a tocar com a Orquestra Sinfônica do Recife e nunca mais me chamaram para nada. Enquanto isso eu sou chamado para tocar fora. Não sou eu só não, tem outros músicos do mesmo jeito. Mas isso não me abate nem não me deixa pra trás. E eu sempre morei no Recife, em Pernambuco, nunca procurei morar fora e tive vários convites para morar nos Estados Unidos, na Europa, no Rio de Janeiro, em São Paulo. Sempre fui ligado a minha família, aos meus pais, que já faleceram há quinze anos. Hoje eu tenho minha família, minha vida tranquila aqui, toco meu violão, estou aposentado, faço meus projetos, estou gravando, escrevendo músicas, viajando. Eu estou bem aqui, estou ótimo, não sinto nada, só um pouquinho de pressão alta, normal, é a falta de exercício, mas isso a gente consegue organizar. Está tudo em paz. E em relação aos mais 50 anos, que Deus lhe ouça! [risos].

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