Coque/Ilha Joana Bezerra

Texto: Felipe Mendes
Fotos: Joás Benedito

São muitas as facetas do Recife. Diferentes realidades econômicas, culturais e artísticas convivem no território da capital pernambucana, construindo uma trama invisível que caracteriza o modo como nos vemos e vemos nossa cidade. Perto de algo tão sutil, a divisão territorial literal dos bairros ganha contornos mais ricos, adapta-se à sensação dos moradores e à vivência cotidiana do Recife.

O bairro que iremos conhecer nesta edição da série Meu Bairro... Moro Aqui, desta Agenda Cultural do Recife, abriga em seu território um aglomerado habitacional tão forte que possui identidade própria. Incrustado no bairro de Joana Bezerra, o Coque já se inseriu há muito na identidade da cidade, infelizmente de forma negativa, devido às condições de pobreza e à explosão da violência ocorrida nas décadas passadas. Paradoxalmente, sua localização é privilegiada, fica perto do centro e permite a locomoção para toda a cidade, principalmente por conta da presença da estação de metrô e integração de transporte público no bairro.

O Joana Bezerra abriga, além do Terminal de Integração, o Fórum Rodolfo Aureliano, comumente de chamado de Fórum Joana Bezerra. O complexo reúne diversas varas cíveis, criminais, de família e outras, além de entidades como a Associação dos Magistrados de Pernambuco (Amepe). Ao lado, fica a  Associação de Assistência à Criança Deficiente  (AACD), mais importante instituição brasileira de suporte a pessoas com deficiência.

O responsável por nos mostrar o lugar onde nasceu e se criou é o artista plástico Tito Lopes. Ele também ministra cursos e oficinas e é educador do Programa Multicultural do Recife, que atua em toda a cidade oferecendo cursos livres na área de cultura. Hoje o artista, que produz quadros, roupas e artesanato, se divide entre seu ateliê – que fica no Pátio de São Pedro – e o Coque/Joana Bezerra.

Uma das localidades mais associadas à violência em toda a Região Metropolitana, o Coque tem conseguido mudanças significativas na vida de seus habitantes, graças a uma maior presença do estado e ao esforço de seus moradores. Aos poucos, vai se desfazendo a imagem negativa do local, em parte por conta de iniciativas culturais como a Orquestra Cidadã Meninos do Coque, que trouxe vida e oportunidades para dezenas de crianças daqui. “Hoje a violência diminuiu muito no Coque”, avisa Tito. Enquanto ela diminui, aumenta a autoestima dos moradores.

Nossa primeira parada é no Esporte Clube Mocidade, que abriga e promove diversas atividades. “O Mocidade é um dos únicos lugares vivos de cultura do Coque. É o único lazer que a comunidade tem”, afirma nosso guia Tito Lopes. Encontramos Risadária Ribeiro da Silva, conhecida como Daurinha, que nos informa o ano de fundação do clube, 1964, e avisa que é exatamente neste mês de maio que se comemora o aniversário do Mocidade com a realização de várias atividades.

O envolvimento de Daurinha com o clube começou cerca de dez anos atrás e se deu por conta de seu marido, Edmar do Nascimento Tavares, sócio há muito mais tempo. Ela também vende alimentos nas festas e shows realizados aqui, conseguindo uma renda. Em sábados alternados acontecem apresentações musicais de bandas diversas e aos domingos a dança toma conta com a gafieira do clube, sempre movimentada. O Mocidade é um time de futebol e o clube abriga ainda cursos e oficinas diversas.

Encontramos também Lindinaldo Tomé, o Nado, morador do bairro há 33 anos. Ele fala sobre o projeto Galo: Cultura e Cidadania, do qual participam 120 crianças de comunidades próximas à sede do Galo da Madrugada, especialmente do Coque. Os alunos de 10 a 16 anos frequentam oficinas de música e confecção de fantasias e adereços carnavalescos e recebem fardamento, material didático e lanche.

Nado e Tito chamam a atenção para as melhorias vivenciadas pelo Coque nos últimos anos, como o calçamento de várias ruas. Eles contabilizam hoje três postos de saúde e seis escolas, avanços significativos para uma comunidade que sempre careceu de melhores condições de vida.

Nosso guia nos leva à sede do Caboclinho Tribojé e da agremiação carnavalesca Urso Preto da Pitangueira. Na casa, encontramos Eunice Maria da Silva, que mora no bairro há 55 anos: “Quando cheguei aqui, as casas eram de palha e a gente chamava o Coco de Nezinho para bater os aterros e fazer os pisos das casas”, recorda-se Dona Nicinha, como é conhecida. De idade avançada e com problemas de saúde, ela transmitiu para sua filha, Maria de Fátima da Silva, a responsabilidade de manter viva essa tradição iniciada há décadas.

Seguimos nosso caminho até encontrar Valdemir Amaro Pereira da Silva, o “Charque”, que nasceu e mora até hoje no bairro. Ele nos fala do Grupão, entidade que agrega várias outras, sempre em prol da comunidade. Em sua sede, sempre foram realizadas várias atividades, tais como cursos profissionalizantes e atendimento médico. Hoje funciona uma pré-escola no local, atendendo a crianças da comunidade. Ele lembra também que Luciano Siqueira, ex-vice-prefeito e atual vereador do Recife, atuou como médico aqui.

Seguindo nosso caminho, passamos pela sede do Bloco Cintura de Ovo e chegamos à casa de Maciel Agripino dos Santos. Logo encontramos estandartes do Maracatu Estrela Dalva, presidido por ele e fundado em 1990, pendurados na parede. Maciel nos diz que são cerca de 150 integrantes no maracatu, a maioria da própria comunidade. Os ensaios acontecem na Av. Central, das mais importantes do bairro. Maciel fala, com orgulho, que o Estrela Dalva foi vice-campeão em sua categoria no carnaval 2011. Ele também é Babalorixá da Casa de Candomblé Ylê da Oxum.

Caminhando por entre becos e travessas, vamos conhecendo um pouco mais da vida dos moradores daqui e somos levados por Tito Lopes ao Afoxé Filhos da Balé, mantido por Severino José dos Santos, o Pai Jurema. Encontramos o Egbamy Thayla de Oxumaré, que nos conta que o afoxé foi criado em 1993. O grupo cultural é resultado da ação do Ylê Axé Oyá Orum Balé, que existe desde 1982 e do qual Jurema é Babalorixá. Ele também é artista, e encontramos bonitas obras nas paredes da casa. “Toda apresentação do afoxé tem sua renda revertida para a comunidade”, avisa Thayla, completando: “estamos nos preparando para fazer um maracatu”.

Tito, que é cumprimentado por inúmeras pessoas durante toda a nossa caminhada, saúda a possibilidade do surgimento de mais um grupo cultural em seu bairro, contribuindo assim para o constante crescimento artístico e cultural dos seus moradores. Ele lamenta, no entanto, que as quadrilhas juninas estejam perdendo sua força e deixando de existir aqui no Coque. “Sempre fui um dos defensores da cultura”, avisa nosso guia.

Nosso passeio termina na Academia da Cidade construída pela Prefeitura do Recife há poucos anos. A presença de tal equipamento significa uma nova postura do poder público em relação à área e tem um impacto positivo na vida das pessoas. Com o sol avisando sua partida e ficando cada vez mais suave, já encontramos pessoas jogando bola, caminhando e se exercitando na estrutura, que conta com campo de futebol e quadra poliesportiva, bancos e mesas, brinquedos e equipamentos de ginástica. Toda a movimentação que encontramos por todos os cantos por onde andamos e os artistas obstinados e moradores cuidadosos que encontramos inspiram Tito Lopes, que resume: “aqui é um caldeirão”.

Por vezes, deixamos que preconceitos e verdades prontas nos ceguem para a inestimável riqueza cultural da qual nosso povo é portador, a despeito da vida dura enfrentada por quem lida diariamente com as dificuldades e privações da falta de estrutura e condições econômicas impostas. Abra bem os olhos e enxergue sua cidade com a lente da sensibilidade de um cidadão que ama o Recife.

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