Adriano Marcena


Iniciado no mundo das artes pelo teatro, José Adriano Feitoza Apolinário criou seu próprio sobrenome unindo as palavras mar e cena, para usar como ator. Com o tempo, ele foi ampliando seus horizontes artísticos e culturais, tornando-se dramaturgo – sendo premiado com obras como A ópera do sol – e, mais tarde, um pesquisador da riqueza cultural do nosso povo. Em conversa com Felipe Mendes, Adriano Marcena conta como se envolveu nesse universo tão amplo, conta um pouco de sua história, reflete sobre aspectos da criação de nossa identidade e fala sobre o Dicionário da Diversidade Cultural de Pernambuco, lançado ano passado.

Você já tem uma longa trajetória ligada ao fazer e pensar cultura. De onde surge esse grande interesse em expressões tão variadas da cultura?
É uma coisa curiosa, porque no bairro onde eu morava, nos colégios de freiras em que estudei e fui expulso de vários... (risos) Eu só vim dar conta de ser gente mesmo quando fui para um colégio do Estado, e lá tinha grupos de teatro, de música, de capoeira. E no grupo de teatro do Colégio Alfredo Freire, em Água Fria, tinha Meia Noite, Jorge Souto Maior, Marcelino Freire, José Britto, Raimundo Branco da Compassos Cia de Dança, Ana Lúcia Lins, jornalista. Esse pessoal todo estava no mesmo contexto de um movimento cultural, e só fui me interessar realmente por essa área de manifestações artísticas de uma maneira geral dentro da escola pública.

Como se deu sua primeira experiência artística?
Como ator, em um grupo dirigido por Josenildo Marinho. Éramos eu, Ivaldo Cunha Filho, Itamira Andrade. A gente fazia um trabalho popular pelos bairros da periferia – vê, naquela época já se fazia isso – com espetáculos curtos.

E como a dramaturgia entra na sua vida?
Eu me lembro que escrevi para umas meninas quando tinha treze anos uma pecinha e elas ridicularizaram bastante porque tinha muito erro de português. A partir daí eu vi que tinha que deixar de brincar nas aulas para me dedicar a aprender português (risos). A minha geração em termos de dramaturgia é formada por Luis Felipe Botelho, Williams Santana, Moisés Neto. Nós estudávamos no Curso de Formação de Ator da Universidade Federal de Pernambuco. Foi a partir do curso que eu comecei a sistematizar mesmo e, em 1987, escrevi a minha primeira peça: Gelatina: sete máscaras de luz, que nunca estreou. Há aí a importância de duas figuras maravilhosas: Marco Camarotti e Milton Bacarelli, sobretudo para mim. Eu levei meus textos para o Camarotti e depois viramos amigos. Por influência dele, eu comecei a estudar e me interessar pela cultura, pelos valores simbólicos da cultura.

Você acabou não continuando a carreira de ator. Por quê?
Depois que terminei o Curso de Formação de Ator, só fiz um trabalho como ator mesmo, uma minissérie da TV Cultura de São Paulo: Zumbi, o rei do quilombo, de Walter Avancini. No meio do curso eu percebi que minha praia era mais ligada à direção e a escrever. Mas poucas pessoas sabem que eu fiz vídeo, fiz parte do movimento vídeo pós Super 8. Eu dirigi acho que o primeiro longa-metragem pernambucano em vídeo: A alma de nossas carnes. Fiz o Mênstruo, na TV Jornal, um vídeo extremamente experimental, sem diálogo nenhum, com Leila Freitas e Williams Santana, depois fiz Sou mais Recife.

Quando você se descobre um pesquisador, um pensador da cultura?
Eu me descobri pesquisador quando decidi fazer o Dicionário da Diversidade Cultural Pernambucana, em maio de 1999. Porque aí não podia mais pensar livremente como um artista numa ficção. Eu tinha que partir de pressupostos teóricos e metodológicos amarradinhos, que pelo menos definissem  aquilo com que eu queria trabalhar. Aí é quando eu volto à academia para estudar História.

Foram onze anos para construir o Dicionário da diversidade cultural de Pernambuco. Em que momento você decide fazê-lo?
Eu escrevi um livro chamado As mugangas de Zeca Apolinário na terra do vulcão encarnado. É a história de um menino que vem do sertão para o mar e encontra um cangaceiro em Serra Talhada, o Dragão do Mamulengo, o Vampiro do Cordel, e no final eu coloquei um glossário sobre todas essas coisas que ele foi encontrando: cordel, mamulengo, cangaço... Eu comecei a perceber o interesse das pessoas no glossário do livro e o interesse dos professores e alunos em tentar entender um pouco essa construção histórica da gente. Então decidi escrever o dicionário e, inicialmente, pensei em fazer um livro para criança. Depois os textos e verbetes foram ficando muito complexos e para dizer o que eu queria precisava citar alguém ou abrir uma discussão antropológica, histórica, sociológica em determinado verbete. Isso foi me afastando cada vez mais do universo da meninada.

Como foi a realização do dicionário? Que estratégias você usou para abarcar um universo tão amplo?
Eu tive que traçar uma metodologia interdisciplinar, transdisciplinar. Eu selecionei aqueles livros clássicos da nossa história, depois aqueles ligados à alimentação, dicionários etimológicos, e cada um desses livros eu ia lendo e retirando o que teria de referência a Pernambuco, mapeando tudo o que eu pudesse usar para o dicionário. Li também teses e dissertações, e depois comecei a enumerar personalidades.  O primeiro critério para entrar era estar morto, porque senão ia ter que colocar todos os vivos que andam por aí e num tem livro que dê (risos). O critério é cruel, mas eficaz. Eu precisava fugir também um pouco das fontes do arquivo público, das fontes bibliográficas e precisava pesquisar in loco. No dicionário tem todas as feiras que eu visitei. Passava três, quatro dias, anotando sobretudo a parte de alimentação, de artesanato, e pegando as expressões, muitas. Há um equívoco das pessoas em acharem que, como é um dicionário, é só de termos, de gírias e as pessoas se assustam quando abrem e encontram rapadura, cachaça, farinha, beiju. Outra coisa interessante é a história do campeonato pernambucano de futebol, seus times. O que eu acho mais interessante nesse trabalho não é tentar registrar Pernambuco, isso é quase impossível, mas as pessoas se sentirem representadas. A grande sacada é fazer a pessoa abrir o dicionário e, dez minutos depois, até inconscientemente, pensar: eu estou aqui. O que eu falo, o que como, bebo, xingo, torço, o que festejo, admiro, tudo aqui. A grande coisa do dicionário é essa, pernambucanos se sentirem retratados por ele.

Qual a importância de se pensar a cultura?
Eu hoje defendo cada dia mais uma visão de cultura que se afaste da arte. A arte é um dos elementos da cultura e está longe de ser o mais importante. A cultura tem que ser pensada por todo cidadão, mas os artistas são os mais engajados, estão mais ligados até profissionalmente a uma política pública de cultura. Já esse pensar acadêmico da cultura é interessante porque não há, dentro da construção de uma sociedade, de uma reflexão, como fugir de um corpo teórico, metodológico. Ainda em Pernambuco se pensa na arte como aquela coisa sobrenatural, um “dom que Deus me deu”, não se pensa muito como uma coisa de mercado, uma profissão qualquer como outra qualquer. Aí sempre fica parecendo arte pela arte, aquela ideia ainda psicodélica da arte sem nenhum referencial. Uma coisa que me preocupa muito, sobretudo em arte, é a tal da inovação. Para você desconstruir tem que ter um conhecimento profundo de construção. Uma coisa que eu acho importante ressaltar é a carência da história da arte em Pernambuco. Do teatro, da música, da dança, das manifestações populares, das artes plásticas. Deveria haver cadernos publicados pelo estado sobre a história da arte daqui.

Esse pensar a cultura passa antes de tudo pelo conhecimento da história da cultura?
Tem que se deixar claro para esses jovens que o mundo não está sendo inventado agora não, o mundo já começou há muito tempo, você só está pegando o trem numa outra estação. A formação passa pela valorização do conhecimento das manifestações artísticas, através da história, do debate, de palestras, trabalhando essa questão histórica. A formação em cultura é dever do estado. As pessoas não sabem o que é o simbólico na cultura. E é um dos três pilares no Plano Nacional de Cultura. Não sabem por que o estado não explica. Tem uma geração que está vindo agora que parece ter uma negação profunda com identidade cultural. Claro que toda identidade não é fixa.

Em que momento você considera que está agora nesse processo contínuo de construção da nossa identidade? Quais os novos paradigmas que estão sendo cristalizados na nossa sociedade?
A gente está passando por um momento muito interessante, que tem a ver com a questão da identidade, mas passa pelo econômico, pelo desenvolvimento. Não digo que a economia é determinante, mas tem uma contribuição muito forte. Esse boom econômico mexe, mas acho que para melhorar. Eu me lembro da discussão que se fazia muito sobre a axé-music acabar com o frevo, detonar tudo, e eu sempre achei que não, que era muito bom deixar a axé-music tocar até dar uma dor para ver se realmente o frevo tinha musculatura cultural entre a gente. E tinha, provado. O que mais hoje chama a atenção da gente para o elemento identitário é o construir Pernambuco a partir desse novo viés econômico. O que une a gente ainda são os elementos de identidade cultural que estão aí traçados e construídos no século XX. Um dos últimos e mais fortes pode ter certeza que é o cangaço. Por mais que não comentemos entre nós, esses elementos da identidade são muito fortes. Com certeza a gente não vai perder esses elementos que estão constituídos, até porque a política e a economia vivem deles também hoje. O frevo, o maracatu, o caboclinho, o xaxado, o cangaço, o arrumadinho, cana com caldinho, o “oxente”, isso a gente não perde nem tão cedo, não tem perigo. Talvez hoje o Armorial esteja muito mais impregnado na cultura do que o Udigrudi e o Mangue. Eu estou dizendo de uma forma empírica, um estudo talvez permeasse isso, é interessante questionar isso. Nós ainda não partimos para uma valorização da cantoria de viola. A Fundação Palmares fez uma pesquisa, uma escavação na Serra da Barriga, onde ficava o Quilombo dos Palmares, e todas as escavações traziam uma forte evidência indígena. Aí a Fundação, que luta para defender, valorizar e fomentar a influência africana no Brasil precisou parar e deixar de lado porque teria que se reconstruir, reinventar toda a história, o mito. Só que na cabeça do historiador está muito claro que tanto o português quanto o africano eram invasores. Isso aqui é terra de índio, o índio vivia aqui. Mesmo. Como é que africano ia se embrenhar aí por dentro sem saber de nada? Eles só conseguiram fazer isso por causa dos índios. Aí na hora que escava aparece o resultado.

O que você acha que cabe ao poder público, aos artistas e ao povo em geral fazer para a construção de melhores condições culturais?
Não tem o Sistema Único de Saúde? Acho que tem que ter um Sistema Único de Cultura. Não se pensa em cultura como um dos pilares da sociedade, que é inclusive garantido pela Constituição. Cabe ao poder público primeiro entender que não adianta só saúde, aprendizagem, economia e seguridades sociais. Isso é importantíssimo, mas quem és tu? Para te responder é preciso que uses tuas ferramentas culturais. Se o estado fizer valer o Plano Nacional de Cultura e depois o Sistema Nacional de Cultura, aí sim você vai ter uma política pública de cultura. E isso vai ser um passo enorme, sobretudo porque o plano foi aberto à população para debate, isso é que é a grande coisa. Não é uma lei do ministro, do presidente, fulaninho, não. Eu mesmo participei e muito. É preciso que se criem também mestrados e pós-graduações na área de gestão pública de cultura. Porque o cara ser o cão chupando manga em artes plásticas, dramaturgia, comunicação, o que for, não significa que ele seja um bom gestor, não. Eu prefiro falar em cultura de uma forma mais abrangente mesmo, generalizada. Essa é a grande coisa, é pegar uma senhora que vende caldinho em Boa Viagem e perguntar por que as pessoas compram. “Ah, porque as pessoas querem tomar caldinho”. É só por causa disso? Quando o Plano Nacional de Cultura valer o cidadão que está ali vendendo caldinho vai saber que não está vendendo apenas um caldinho, mas um fragmento do patrimônio imaterial, ele está vendendo um saber entronizado no paladar da gente. Cabe às pessoas entender que isso é tão importante quanto o viaduto da esquina. Esse paradigma começou a mudar do governo Lula para cá, foi quando nós começamos a perceber que éramos importantes, porque tínhamos uma formação cultural estupenda, maravilhosa, rica, complexa e dinâmica, de fazer inveja ao mundo. E o mundo ainda não percebeu. Mas antes é preciso que nós nos apercebamos. Se a gente não se reconhece enquanto sujeitos detentores de todo esse poder, a gente não afasta o preconceito, vai continuar com aquela visão eurocêntrica, americanizada, em que só presta o que é de fora. E cabe à população se aperceber como detentora de todo esse patrimônio.

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