DJ DOLORES


Fotos Raquel Freitas / divulgação

DJ DOLORES

Nascido em Propriá, Sergipe, Hélder Aragão veio aos 18 anos para o Recife “descobrir o que queria fazer na vida” e ambientou-se, fazendo parte de toda a ebulição musical e artística do Manguebit na década de 1990, e construindo em seguida uma respeitada carreira como Dj Dolores. Em conversa com Felipe Mendes, o músico fala sobre a transformação de designer gráfico a Dj respeitado internacionalmente, a gestação do Mangue, a construção de sua sonoridade peculiar, além de debater políticas públicas e o impacto das novas tecnologias na indústria fonográfica.

Você já chegou a tocar algum instrumento musical mais “tradicional”?
Eu tocava bateria em uma banda punk quando eu era adolescente, isso em Sergipe ainda. Nessa época eu comecei a ouvir música eletrônica, não a de pista, mas a música eletrônica erudita: (Edgard) Varèse, John Cage, entre outros. Eu pirei com as possibilidades dos caras tirando timbres, trabalhando com loops e me desinteressei completamente por instrumento tocado. Comecei a fazer loop com fita cassete, que é o que eu tinha em mão. Botava às vezes três, quatro gravadores fazendo loops ao mesmo tempo, isso na segunda metade da década de 1980. Quando eu cheguei ao Recife, meu primeiro emprego foi desenhando cartum para o Jornal do Commércio e outros jornais e, por causa dessa coisa de desenhar, fui parar na TV Viva, pra fazer desenho de animação. Lá eles tinham um computador chamado Amiga que, muito antes dos PCs, já trabalhava com áudio e vídeo. Eu já tava começando a fazer programação de batidas e me lembro que Chico (Science) sempre aparecia por lá porque também era fascinado por essas coisas. Ele vinha do Hip Hop, em que basicamente tudo é batida eletrônica. A gente passava tardes mexendo no Amiga.

Essa experiência o levou às trilhas sonoras para TV, filmes e teatro. Como você se aprofundou nesse trabalho?
A culpa é de Kléber Mendonça (Filho). Eu comprei um 286 (um dos primeiros computadores pessoais comercializados) para fazer gráfico, mas tinha uns programinhas bem simples de música e eu comecei a pirar. Ele estava fazendo Enjaulado, seu primeiro filme, e disse: ”essa música vai caber direitinho no filme, compõe mais material que eu quero usar”. Então a trilha sonora original do Enjaulado eu fiz a maior parte, Stela Campos fez outra e o resto Kléber saiu pegando das fitas demo da galera que estava começando na época. O Enjaulado foi o marco inicial pra um monte de gente, ninguém tinha registro em CD. Tem lá a primeira gravação de Otto, do Eddie, de Faces do Subúrbio, minha, de Stela. E acho curioso como é a cara do Recife não conseguir se enxergar, porque no dia do lançamento do disco, que era documento fundamental de uma cena recifense independente, a gente só conseguiu uma notinha pequena no Diario de Pernambuco, porque a capa era sobre a visita de uma ex-spice girl ao Rio de Janeiro (risos).

O nome Dolores surge nesse momento?
Não levava música tão a sério e pensei em inventar um nome pra não atrapalhar minhas outras coisas. Aí inventei esse nome patético que vai me acompanhar até a morte, provavelmente. Tem várias histórias, algumas são mentiras, outras ficção...(risos) A gente pode pular essa parte. Tem várias explicações, todas mentira.

Pode contar uma mentira então...
Dolores era o nome de uma tia do Hilton Lacerda, que hoje em dia faz roteiro pra cinema. A gente tinha um escritório de design e essa tia dele era bem rabugenta (risos). Aí eu achei de botar Dolores.

Como era, no início do Mangue, pra você? Existia apenas uma vontade de fazer ou já havia uma visão mais ampla do que aquela movimentação poderia causar?
O Manguebit era uma coisa de turma, essencialmente. Porque o Recife era muito árido, a única coisa que você tinha pra fazer era assistir filme cabeça na Casa da Cultura. Não tinha bar, não tinha nada. Então a gente começou a fazer festas pra se divertir, a primeira foi em 1989. Eu gosto sempre de apresentar o ponto de vista de que o Manguebit não nasceu como uma cena de músicos, mas de Djs, porque todo mundo era Dj e a gente se revezava. Renato L., Chico Science, H.D. Mabuse, até Fred 04 já foi Dj. Essas festas foram o ponto de encontro de um monte de gente, muitas bandas se formaram nelas. Eram festas bem inspiradoras no antigo Adília’s Place, que era um bordel belíssimo com um baita salão de dança com o chão todo de madeira, sofás de couro vermelho, candelabros, balcão de madeira, era incrível. A gente alugava bem barato e era uma coisa tão diferente que, na primeira festa que a gente fez, Dona Adília ficou desconfiada com aquela molecada naquele lugar marginal e a gente teve que pagar mais caro, porque ela fechou os quartinhos que alugava pras meninas fazerem programa. Então essa primeira festa, marco do Manguebit, chamava Sexta Sem Sexo, porque nessa noite nenhuma das meninas trabalhou lá no Adília’s (risos).

O que se inicia, como você disse, como uma turma querendo se divertir, adquire conceituação, nome, uma “filosofia”. Quando isso tudo tomou corpo?
Quando Fred resolveu reativar a banda Mundo Livre S/A, que estava parada e quando Chico começou a fazer música. Tinha dois lados na turma: um que vinha dessa coisa da black music, que Chico e Jorge du Peixe eram representantes mais fortes, e o lado roqueiro e mais experimental que era eu, Fred, Renato... Do nosso lado a gente era muito fã do punk. Aí se começou a inventar coisas, e Chico era muito bom nisso, o nome Mangue foi ele que inventou, essa metáfora foi dele. As coisas mais forçadas, como o vocabulário mangue, nunca decolaram. O que decolou realmente era o que a gente já sabia fazer. Fred escrevia muito bem e escreveu o manifesto, Chico tinha esse dom de causar uma empatia muito forte e apareceu com essa referência aos chips, à coisa eletrônica, misturando coisas de b-boy com coisas da cidade, maracatus, etc. Esse conceito Mangue era bem coletivo e discutido exaustivamente até se aprimorar e chegar a uma coisa mais fina. Acho que a principal coisa transformadora é que a gente teve a sorte de ter um ícone muito forte, que é Chico Science. Você pode ter um monte de gente super talentosa, mas essa figura do ícone, que é um cara carismático que serve de exemplo, é fundamental. Todo moleque, de classe média ou de periferia, queria ser Chico Science. Isso fez muita coisa acontecer.

Você costuma manter bandas, com músicos tocando instrumentos elétricos e acústicos e cantando. Como é o seu laboratório, a construção do seu som?
Eu não sei responder a essa pergunta (risos). Basicamente a ideia é que eu não toco instrumento, então manipulo sons que músicos gravam pra mim. Ao invés de usar só samplers de outras músicas, eu sampleio o que a gente grava no estúdio. Às vezes eu vou com um tema pronto, às vezes fazemos uma jam e depois saio cortando, montando. Dá pra alterar o tom, o andamento, dá pra reconstruir completamente a música de modo que o músico nem tem controle sobre aquilo e nem pensou em fazer aquilo dali. É uma possibilidade que as máquinas te permitem. Não quero cair na armadilha de dizer que sou maior do que um músico ou criar uma oposição entre músico e produtor, não é isso. São métodos de trabalho diferentes, eu uso e retoco o trabalho de outra pessoa, esse é o espírito.

E quando surgiu a sacada de não apenas utilizar samplers, mas de botar uma banda pra tocar?
A primeira banda, juro, eu montei porque morria de medo do palco e precisava ter um monte de gente na minha frente e ficar escondidinho lá atrás. Essa foi a razão mais verdadeira que eu posso dizer. E ao vivo é banda e todo mundo está em pé de igualdade.


Sua carreira deu muito certo lá fora, e hoje você tem até mais espaço em outros países do que no Brasil. Como foi o caminho pro exterior?
Eu tinha um desejo muito pessoal de viajar e conhecer o mundo que eu tanto imaginava, e sabia que ser pago em Euro era muito mais legal do que ser pago em Real (risos), ainda mais naquela época, então comecei a direcionar mesmo. A primeira vez que eu saí do país, em 2001, fui ao Texas e depois a Paris. No segundo ano eu já consegui voltar com a banda. Aí (o produtor) Paulo André percebeu que eu estava ganhando alguma repercussão e se envolveu. Em 2003 ele organizou uma turnê em que a gente fez 35, 36 datas em dois meses, foi a maior turnê de artista brasileiro naquele ano em solo europeu. Aí o negócio vai crescendo naturalmente. Mas agora, em uma visão bem prática e profissional, já não tenho tanto interesse no exterior, a não ser pra garantir uma certa respeitabilidade. A Europa está vivendo uma crise econômica de fato, não é brincadeira. O grande mercado atualmente é o Brasil. Eu lamento realmente durante tantos anos ter me descuidado do Brasil, porque podia estar com a carreira muito mais forte aqui se tivesse investido mais.

Quais são os caminhos para o futuro da música?
O futuro é o download free. Isso tem que ser repensado de um modo legal muito rápido, porque você não pode criminalizar um moleque que baixa música, isso é um absurdo. Se esse problema existe, é para um modelo antigo de mercado. Precisamos repensar esse modelo com urgência porque ele é antigo e falido. No Pará, os caras criaram um modelo de cadeia produtiva super interessante, em que o Dj ganha fazendo show. É um modelo que funciona super bem, movimenta muita grana, muita gente vive disso e ninguém está roubando ninguém. Quando você vê essas propagandas antipirataria, elas são de uma mentira atroz. Meu amigo Ronaldo Lemos, da Fundação Getúlio Vargas, o cara que trouxe o Creative Commons (www.creativecommons.org.br) pro Brasil, foi saber de uma pesquisa apontada pela indústria fonográfica que teria sido feita na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) sobre suas perdas com a pirataria. Ele foi lá e não existe essa pesquisa, não existe nenhum estudo sério, formal, acadêmico sobre o impacto da pirataria no Brasil.

E agora a gente tem essa proposta de uma revisão nas leis de direito autoral. Ninguém quer tirar o direito autoral do artista, a gente quer tirar o poder do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), porque a lei dá direito ao ECAD pra controlar o que é seu. Eu já produzi festas em que eu tive que pagar pra executar minha própria música. Como eu, fazendo uma festa independente, pequena, tenho que pagar pra executar as minhas músicas? Eles têm tanto medo do Creative Commons ou outro modelo de licenciamento, seja lá qual for, porque a gente que dialoga com essas novas tecnologias pode ter o controle da nossa faixa. A gente pode liberá-la pra tocar, remixar, fazer uma versão, gravar, e aí é uma coisa de “acerta direto comigo”, não precisa passar pelo ECAD. Por email se resolve isso. Interessa que as pessoas toquem minha música, façam versões, que a molecada faça remixes, isso enriquece o meu trabalho. Hoje você legaliza sua obra em minutos, sem gastar um centavo, na frente do computador, sem ECAD, que tem um sistema completamente fora do contexto atual, porque é por amostragem. Comprovadamente não funciona e é totalmente incoerente porque a gente tem computador, informática. Tocou na rádio uma faixa, bota no sistema que o cara vai receber um Real que seja. É assim que funciona na Europa, eu recebo uma grana razoável de direito autoral toda do exterior porque lá, tocou uma vez, tá registrado no sistema.

O que o poder público pode fazer para atuar de forma eficaz no desenvolvimento da cadeia produtiva da música?
É preciso pensar política pública no sentido de mover a cadeia produtiva. Em vez de dar tanto show de graça, dar tanto dinheiro pras pessoas fazerem discos que às vezes não acontecem, porque não criar gatilhos que façam as pessoas se envolverem na indústria de fato? Linhas de crédito fáceis são mais interessantes. Você, sabendo que seu disco não vai vender tanto, vai gastar pouquinho pra fazer, mas vai ter um crédito fácil. Isso é muito mais estimulante e maduro. Subsidiar pequenos clubes para que eles possam fazer shows com qualidade, com som bacana, pagando os músicos direitinho é muito mais poderoso. Essas ações têm um efeito de longo prazo e profissionalizam, sustentam muita gente. Quem faz essa música de caráter mais popular como o brega é muito mais esperto nesse sentido, os caras sobrevivem independentemente de auxílio do estado ou da opinião da imprensa. É importante mirar essa sustentabilidade, pra usar uma palavra da moda. Obviamente existe gente brilhante que não sobreviveria sem um subsídio oficial, e esse discernimento cabe ao estado, é papel dele criar uma situação que interesse à maioria da população.

O que já há de concreto para esse ano de 2011 e quais os projetos do Dj Dolores?
A coisa mais certa é que a gente deve fazer um disco novo com a Orquestra Santa Massa. Fazer também um disco de remix, pra promover essa coisa de Dj. Comecei fazendo o de Catarina (dee Jah), da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, é uma coisa que impressionantemente ainda falta aqui no Recife, tem muito pouca gente fazendo eletrônica ou usando essas ferramentas. Ainda não houve essa ruptura de entender o Dj ou o produtor como um artista, alguém criativo. O Recife é ingrato com essa cultura do Dj. A máquina me dá a mobilidade de um músico, tem possibilidade improvisar, sair costurando a música. Eu sinto bastante falta disso aqui no Recife.

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