Giro Literário, a literatura nas suas mãos: Escritores da Cepe discutem proximidade entre realismo e fantasia
Para quem gosta de literatura, esta matéria é bem interessante, principalmente porque os escritores foram publicados pela CEPE e suas obras estão disponíveis na loja virtual.
Por outro lado, ainda nesta matéria, os escritores tecem comentários sobre o tema. Aproveite o fim-de-semana com a literatura em suas mãos. è importante frisar que a matéria é da assessoria de imprensa da Cepe e, por ser bastante esclarecedora, a agenda cultural do Recife, a publica na íntegra.
Literatura fantástica e seus subgêneros como alternativa para narrar fatos e comportamentos contemporâneos ainda incompreendidos
Uma pandemia transforma para sempre o comportamento social: obriga o mundo a se isolar, usar máscara para cobrir boca, nariz e olhos, lavar as mãos, desinfetar tudo compulsivamente e manter distância de outros seres humanos. Ruas estão vazias. É preciso conter um inimigo invisível, um vírus letal. Essas primeiras linhas poderiam integrar uma narrativa de literatura fantástica, gênero que já obteve várias definições e ganhou subgêneros ao longo da história. Se por um lado há quem ainda o enxergue como subliteratura e entretenimento - pelas inserções de fantasia, ficção científica e horror - , por outro é visto como arte, e uma das boas maneiras de narrar períodos difíceis como esse que estamos vivendo: o absurdo se tornou realidade.
“Literatura fantástica é a literatura do inconsciente. Aspirações, instintos, desejos e fobias manifestam-se por meio de sonhos, que sempre contêm elementos fantásticos. A literatura original da humanidade é a fantástica. O realismo, na literatura, é coisa relativamente recente. Os primeiros escritos literários foram mitos, fábulas e lendas lendárias. Com a prevalência, na Idade Moderna, do conhecimento empírico, a fantasia começou a ser estigmatizada como sinônimo de ilusão e mentira, mas Charles Perrault e outros moralistas franceses viram nela um meio de inculcar nos jovens modelos de comportamento social vigente. Depois, o romantismo reabilitou a fantasia por completo - graças ao escritor alemão E. T. A. Hoffman e o americano Edgar Allan Poe, entre outros -, a psicanálise devolveu-lhe o status de tradução do inconsciente humano e o surrealismo a elevou muito acima do realismo”, analisa o escritor da Cepe Paulo Schmidt. Ele é autor do livro de literatura fantástica Anjo Negro, vencedor do Prêmio Nacional de Literatura 2017.
Outro autor de literatura fantástica da Cepe, João Paulo Parísio, que assina Legião Anônima, enxerga toda literatura como fantástica, sem exceção. “O realismo-naturalismo, que opera maravilhas, é um campo de espectro dentro dela, a que podemos chamar fantástico involuntário ou compulsório. Não existe uma oposição… real. Ela é fruto de uma… fantasia. Mas entendo que num sentido amplo e popular - o meu preferido -, a literatura dita fantástica é aquela que lida com elementos que não integram o consenso sobre a realidade, seja inserindo-os nas frestas de um cenário que se quer verossímil, seja através do engendramento de mundos que se querem distintos do nosso, ainda que consistentes em sua lógica interna. O consenso sobre o real tem fronteiras incertas, e certos temas são consagrados como fantásticos pela tradição, por um lento processo de sedimentação cultural. Histórias de fantasma são um exemplo clássico. Se fantasmas existirem, entretanto, essas narrativas deveriam ser consideradas realistas? Como a vida dos mortos é algo menos irrefutável que a morte dos vivos, estabelece-se uma espécie de acordo segundo o qual os contos fantasmagóricos acabam inscritos na categoria do fantástico”.
Mesmo com títulos e autores famosos e premiados como Cem anos de solidão (1967), do colombiano Gabriel García Marquez (1927-2014), Jorge Luís Borges e José Saramago; e os brasileiros Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis (1839-1908), O ex-mágico (1947), de Murilo Rubião (1916-1991); Os cavalinhos de platiplanto (1949), de José.J. Veiga (1915-1999), A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água (1962), de Jorge Amado (1912-2001), e Incidente em Antares (1971), de Érico Veríssimo (1905-1975), Lygia Fagundes Telles, o fantástico ainda carrega consigo o estigma de subliteratura. “Principalmente no Brasil, um país de tradição literária tão realista, o fantástico é visto como uma espécie de ‘nicho’ à parte da produção literária. Felizmente, acredito, essa separação vem caindo, e vejo um interesse maior em obras que subvertem, sutilmente ou não, aspectos das realidades, ou que mesmo tentam apresentam mundos (ou tempos) bastantes diferentes do nosso — que, por sinal, hoje já não é tão parecido com o que era alguns meses atrás. O fantástico e o especulativo são bastante efetivos em mostrar as distorções que já existem nas nossas sociedades e em nós mesmos, e, por isso, também se revelam sempre caminhos instigantes, ainda mais quando estamos diante de mudanças duras naquilo que entendemos como cotidiano”, reflete o editor da Cepe, Diogo Guedes.
Para não serem chamadas de fantásticas e serem ‘levadas a sério’, portanto, algumas obras trazem o nome de realismo mágico. “Há uma relativa, mas decrescente, hegemonia do realismo no Brasil. O fantástico deliberado tem crescido, e Pernambuco é um celeiro. Na produção local, destaca-se o elemento do terror e o aproveitamento de matéria-prima nativa. As temáticas nascem de nós, seres humanos e atuais, contingentes, vastos continentes de emoções, ideias, incoerências intrínsecas, de modo que sempre haverá o diálogo das almas. Porém, com o avanço do retrocesso, se você me permite o paradoxo, em volta do mundo, as ficções distópicas, sombrias, o próprio terror, reverberam sentimentos que experimentamos aqui e agora. Recentemente, dois expoentes do fantástico nacional publicaram artigos em busca de pontos de contato entre as curvas da realidade e as da dita literatura de gênero. Cristhiano Aguiar traça paralelos entre o ponto em que nos encontramos e os filmes A chegada e O enigma de outro mundo, dois clássicos da ficção científica a meu ver, embora aquele seja recente. Nenhum deles fala sobre um vírus, mas há em ambos o medo e a dúvida ante a emergência de uma variável desconhecida, potencialmente danosa”, analisa o escritor da Cepe João Paulo Parísio, autor de Legião Anônima (2014).
O escritor Rômulo César Melo também defende a grande produção do gênero fantástico atualmente. “Inclusive no Nordeste, no nosso estado. Em Natal temos Márcio Benjamim, com carreira consolidada no terror, aqui Roberto Beltrão, André Balaio, João Paulo Parísio, Marcelo Trigo, Frederico Toscano, todos dedicados ao fantástico. Faço parte de um grupo de WhatsApp com todos eles e mais o Christiano Aguiar e Oscar Nestarez, que vivem em São Paulo. Só para falar dos meus conhecidos, todos com livros publicados, bem recebidos. O que falta, talvez, seja uma maior atenção das editoras e uma melhor divulgação ou distribuição do produto”, ressalta. Rômulo acredita que é bem possível que milhares de escritores estejam escrevendo suas impressões sobre o momento atual e que isso gere centenas de narrativas fantásticas. “Essa pandemia, por si, parece um filme de terror, uma situação apocalíptica impensável. Entendo que toda forma de arte é capaz de abrir cabeças, revelar novas possibilidades. A literatura fantástica tem, sim, a faculdade de atrair, por meio dos seus recursos extraordinários, os olhos do leitor para uma realidade que, talvez, sendo-lhe mostrada nua e crua, de forma realista no sentido literário, não fosse alcançada. Não quero dizer que essa tenha de ser, doravante, a meta deste tipo de literatura, apenas que pode ser utilizada para tal finalidade se assim o autor desejar. Para fechar o raciocínio, numa época de tanta dor e tristeza, desconfio que o escritor que quiser e souber contar esta história por meio do fantástico poderá alcançar um resultado mais efetivo e afetivo junto ao público do que aquele que for pelo caminho da realidade pura e simples”, declara Rômulo, autor do livro Dois nós na gravata (2015), vencedor regional da segunda edição do Prêmio Pernambuco de Literatura.
O escritor da Cepe Walther Moreira defende que nem mesmo o conceito de literatura fantástica que transcende o real pode ser aplicado a um texto por tempo indefinido. “Por exemplo, quando Júlio Verne escreveu Da terra à lua, publicado em 1885, o livro era literatura fantástica, mas depois que o homem pisa o solo lunar, o livro é só de literatura”, exemplifica Walther, autor de Todas as coisas sem nome (2017), vencedor da Zona da Mata do IV Prêmio Pernambuco de Literatura 2016.
Para Paulo Schmidt, a temática de fantasia que mais dialoga com a realidade é a distopia - versão pessimista do futuro. “Consagrado por George Orwell (1984) e Aldous Huxley (Admirável mundo novo), esse subgênero encontra ressonância entre os leitores jovens por meio de obras seriais como Jogos Vorazes e Divergente”, defende o escritor. Mas ele não enxerga o gênero como sendo direcionado a uma faixa etária específica. “O que existe é uma literatura fantástica dirigida ao público infanto-juvenil (Harry Potter e as Crônicas de Nárnia), ou dirigida a adultos e que caiu no gosto juvenil - J.R.R. Tolkien, autor de O Senhor dos anéis- e a de entretenimento (Crônicas de Gelo e Fogo, de George. R. R. Martin)”, exemplifica. “Os livros de Ray Bradbury (Fahrenheit 451, Algo sinistro vem por aí, Um cemitério para lunáticos) ou do Lewis Carroll (Alice no país das maravilhas, Alice através do espelho) transcendem a questão de faixa etária”, completa Walther.
CONCEITOS HISTÓRICOS
Uma das mais recentes definições de literatura fantástica foi descrita pelo escritor, filósofo e crítico existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). Para ele o fantástico é o absurdo vivido no mundo real; o caos da vida contemporânea. O fantástico, no entanto, entrou na literatura quando a escrita ainda nem existia. Para o escritor norte-americano H. P. Lovecraft (1890-1937) - conhecido por revolucionar o terror adicionando fantasia e ficção científica -, o fantástico começou com as lendas e mitos religiosos contadas pelos povos primitivos. Já o filósofo e teórico literário búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017) defendia que o fantástico se localizava na fronteira entre o real e o sobrenatural. Se o leitor interpretar o inexplicável como metáfora, o fantástico deixa de existir.
SINOPSES DOS LIVROS DA CEPE DESCRITA PELOS AUTORES:
Dois nós na gravata, de Rômulo César Melo
(R$ 25 - livro impresso; R$ 9,50 - e-book)
O Dois nós na gravata é o começo do meu experimento com o gênero. Diria que podemos pinçar do livro contos que flertam com o Fantástico, embora não se possa dizer que se trata de uma obra mergulhada nesta temática, porque inexiste uma unidade em torno dela.
Há, por exemplo, um conto que trata de uma volta ao paleolítico por meio do toque das mãos de uma paleontóloga em pinturas rupestres; outro em que o personagem se excede na bebida e sofre de supostas alucinações que o levam ao começo do namoro com sua atual esposa, fato que poderá modificar toda a história da relação; o que encerra o volume, um dos que mais aprecio, narra o final da vida de Machado de Assis, viúvo e doente, que recebe a visita de seus dois principais personagens, Bentinho e Brás Cubas, ambos vêm cobrar direitos sobre a continuação de suas próprias histórias de vida e destinos. Somente por estes exemplos, nota-se que há uma pitada de fantástico entre outros contos mais realistas.
Anjo Negro, de Paulo Schmidt
(R$ 40 - livro impresso; R$ 9,90 - e-book)
O pressuposto fantástico do Anjo Negro é o de que a tradicional resistência do Brasil ao progresso, a incapacidade do seu povo de se livrar da miséria, e a assustadora perversidade da sua corrupta classe política, possuem uma causa sobrenatural: a presença no país, desde a colonização, de duas facções tenebrosas que vêm se alternando no poder ao longo da história. Essas duas facções são os lobisomens, ou zevianos, e os vampiros, ou atalefitas, que representam, respectivamente, os extremismos de direita e de esquerda. Embora inimigos naturais, tanto zevianos quanto atalefitas lutam para perpetuar a pobreza no país, pois as grandes massas de miseráveis, desamparadas e ignoradas pelas autoridades, servem de alimento aos zevianos, que os devoram, sobretudo no campo, e aos atalefitas, que lhes sugam o sangue, sobretudo nas cidades. No romance, portanto, os elementos fantásticos (lobisomens e vampiros) são personificações de mazelas nacionais, que o presidente Getúlio Vargas e seu guarda-costas, Gregório Fortunato (o Anjo Negro do título) lutam para extirpar.
Todas as coisas sem nome, de Walther Moreira
(R$ 30 - livro impresso; R$ 8,91- e-book)
Em contos como “No pequeno café pierrot”, “Liquidação de verão” ou “Ela permaneceu encostada à sacada” (Todas as coisas sem nome) há flertes com o fantástico quando, por exemplo, imagino o Anjo da Morte e São Miguel Arcanjo, trabalhando na polícia do Rio do Janeiro e ambos dividindo uma kitnet. Eu não sei por que isso acontece em minha literatura. É como se o “real” não desse conta de certos temas, de certos sentimentos.
Legião anônima, de João Paulo Parísio
(R$25 - livro impresso; R$ 8,91 - e-book)
É um livro quase completamente ambientado no Recife contemporâneo. O fantástico emerge do próprio cenário urbano que nos é familiar, seja em plena avenida Conde da Boa Vista, seja na intimidade de um apartamento nos Aflitos onde alguém mora só. A premissa não premeditada, digamos, é a fusão das substâncias do dito real e natural, inclusive através da violência e da escatologia, com o dito irreal e sobrenatural, inclusive através do monstruoso, operação da qual talvez resulte a sensação de que a distinção entre essas instâncias não passa de um artificialismo afetado, e reconfortante, da civilização. O fantástico é um expansionismo, não um escapismo.
Os títulos podem ser adquiridos na loja virtual da Cepe: https://www.cepe.com.br/lojacepe/
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