Ilustração retrata realidade com pitadas de ficção e vice-versa
Cepe Editora tem recorrido à técnica em suas publicações mensais e literárias para expressar conceitos densos e abstratos
Dizia o filósofo chinês Confúcio: “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Nem sempre. Às vezes a imagem funciona como um complemento das palavras, um respiro dentro do texto jornalístico ou literário, algo que comunica mais rapidamente, somente para se ter ideia do que o texto nos irá apresentar. É um preview, um trailer. Quantas pessoas não julgam o livro pela capa? Seja uma fotografia ou uma ilustração, o recurso gráfico é o primeiro a atrair o olhar. Não nos enganemos. Julgamos, sim, pela aparência. Mas enquanto a fotografia é recurso mais utilizado para mostrar a vida como ela é, a ilustração materializa em desenhos realidades mais subjetivas, menos palpáveis. Nas publicações da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) é comum o uso de ilustrações, não apenas nos livros infantis, mas também nas capas das obras literárias, e nas duas publicações mensais, a Revista Continente e o jornal literário Suplemento Pernambuco.
Este último é basicamente ilustrado, como nos explica a coordenadora de arte Hana Luzia: “O Suplemento Pernambuco, por ser um veículo que trata majoritariamente sobre literatura, necessita de uma abordagem mais poética, focada em ilustrar os conceitos das obras. As fotografias são mais utilizadas quando o foco da matéria é sobre o autor ou autora, ou nas capas dos livros nas resenhas. Portanto, para não haver desgaste imagético a partir do uso de retratos de rostos, sempre optamos por usar mais ilustrações que fotografias”, explica.
Apesar de utilizar menos a ilustração, a Revista Continente tem feito uso do recurso com mais frequência nos últimos anos. “As ilustrações exploram realidades que as fotografias não alcançariam. É também uma releitura do texto, sob os olhos de quem está ilustrando. É um recurso que valoriza a publicação, em tempos de constantes crises no mercado editorial”, opina o designer da Revista Continente, Jânio Santos. O superintendente de produção editorial, Luiz Arrais, explica que a maior densidade dos textos tem colocado a revista nesse caminho. Assim como as capas dos livros da editora. Mas também não descarta como justificativa para o boom da ilustração um movimento de retorno ao uso dos traços, como nos tempos em que não havia fotografia. “Enquanto há sites que disponibilizam fotos gratuitamente, o custo de encomendar ilustrações é alto e tem um caráter de exclusividade, o que agrega valor ao produto editorial”, pontua Arrais.
Mesma opinião tem a designer Hallina Beltrão. Ela acredita em uma predominância da ilustração em relação à fotografia não somente dentro dos periódicos literários, mas como a volta de uma tendência. “Na literatura, uma área que tem temas predominantemente abstratos, é muito mais fácil recorrer a uma ilustração, onde ‘tudo é possível’ e os recursos são ilimitados. Mas vejo esse movimento de retorno também em outras áreas como a música e o cinema. Muitas capas de livros, de discos e cartazes de filmes estão fazendo esse caminho de volta às ilustrações e isso é maravilhoso”, comemora a designer.
Já a também designer Karina Freitas concorda que há atualmente um aquecimento do mercado de ilustração. “Mas não de uma linguagem em detrimento da outra”, esclarece. Karina está fazendo as ilustrações da série Viagem ao país do futuro, projeto de parceria entre a Cepe e o jornal português O Público, que consiste em 12 reportagens sobre o Brasil visto através da literatura. A autoria das matérias é da jornalista portuguesa Isabel Lucas. Ao final, as matérias serão transformadas em livro. “É um projeto desafiador”, resume a designer, que alia fotografias e ilustrações, em um processo de colagem digital. Karina também usou a mesma técnica para criar as capas dos livros da série Ficcionais, que narra o processo criativo de autores, bem como suas referências, inspirações e toda a mudança emocional e física que a escrita proporciona. “Mexeu muito comigo, foi quando comecei a me questionar como ilustradora. A técnica me permitiu falar do real sem ser literal. Era uma maneira de também fazer ficção, com uso de imagens que existem muito na esfera do impossível, do impensável”, explica Karina. Para ela, a colagem pode ser lida de várias formas, disposta em várias camadas, brincando com o espaço/tempo.
ILUSTRANDO
Como expressar em imagens um ensaio de uma psicanalista sobre cartas de suicidas? A matéria de capa da Revista Continente de setembro 2018 trazia o título Ponto Final, com o belo traço da artista visual Clara Moreira. “Optamos por ilustrar toda a matéria, não só a capa, simplesmente porque o tema não possibilitava uso de outra coisa que não fosse ilustração. Então nem chegamos a avaliar se usaríamos fotos ou ilustrações”, recorda Jânio.
Outra capa e conteúdo da Revista Continente, a de março, sobre o uso de smartphones, foi ilustrada por Hallina Beltrão. “O recurso da ilustração traz desenhos pensados para o próprio texto, dando mais destaque ao produto que iremos ofertar. Daí, ao definirmos pela ilustração, contactamos a ilustradora e conversamos sobre nossas ideias e objetivos, como um briefing (importante acrescentar também como se dá a seleção de ilustradores, já que são infindáveis estilos de desenhos). Neste caso, definimos por Hallina pois é uma ilustradora que tem um estilo que achamos ser o mais adequado para o que a matéria pedia”,explica Jânio.
Hallina diz não saber se existe uma definição para o estilo dos seus desenhos. “Mas os meus trabalhos têm muito da minha personalidade e muito da minha intuição também. As cores saturadas, a alegria e os traços mais femininos, que são detalhes bem marcados do meu estilo, sempre saíram naturalmente. Acho que é uma coisa que sempre tive”, declara a designer, que ilustrou também a capa do livro Condenados à Vida, de Raimundo Carrero, seu trabalho mais desafiador para a Cepe. “Por ser um livro que reunia quatro livros da obra do autor, precisei pensar bastante em como poderia representar aqueles quatro títulos em uma só imagem”.
Também leva a assinatura de Hallina a capa do infantil lançado recentemente, A domadora de palíndromos, de Fred Bellintani. O processo criativo dos desenhos começa com algumas leituras do texto do livro. “Geralmente leio entre duas e três vezes a história para começar a imaginar os personagens, cenários, cores. Para esse livro específico, também procurei inspiração vendo cartazes antigos de circo, filmes e tentando resgatar minhas memórias pessoais sobre a vida circense, que é um tema que sempre me encantou, desde criança”, reflete.
A leitura do texto que se vai ilustrar, claro, é primordial para o trabalho. “Muito difícil trabalhar com literatura sem querer ou gostar de ler. Muitas vezes a ideia sai de uma frase, uma palavra e até uma entonação do autor. Não podemos também ser literais, principalmente em temas mais abstratos como emoções. Como somos uma publicação mensal, temos tempo para ler, discutir, pesquisar referências, ou seja, trabalhar o texto visualmente, muitas vezes através de figuras de linguagens visuais (retórica visual)”, explica Hana. Segundo ela, não há um estilo definido para as ilustrações do Suplemento Pernambuco. E é melhor que não haja, para não incorrer em repetição. “Sendo o Pernambuco um grande espaço livre para expressão gráfica, trabalhamos com uma equipe diversa (tanto na equipe fixa quanto nos colaboradores externos), de estilos e técnicas diferentes. Já tivemos ilustrações com bordado, pintura digital, colagem manual e digital, códigos aleatórios em javascript, entre outros”, enumera Hana.
PRÊMIO
Ano passado, o Pernambuco recebeu três prêmios Brasil Design Awards, maior e mais importante premiação do design nacional. O jornal literário foi premiado na categoria Design Editorial com três capas. Uma delas, Vidas Secas, de setembro de 2018, assinada por Hana com colaboração de Maria Júlia Monteiro, lembrou os 80 anos do livro homônimo de Graciliano Ramos, conectando ao tempo atual, quando o Brasil voltou ao mapa da fome. “Para esta edição a ideia principal foi trazer a memória da (cadela) Baleia, personagem marcante da obra, assim como uma homenagem e releitura do sol de Aldemir Martins (primeira edição de 1938) que é um marco na memória visual da obra. A cor vermelha, principal cor da edição, é uma metáfora ao calor e à violência, mas desta vez a violência da pobreza. As linhas brancas que delineiam o título da capa, assim como as variações de sol e as rachaduras (internas), representam a claridade, reforçando, por meio do contraste, uma incandescência. Também é uma alusão à caatinga e terra avermelhada descrita por Graciliano por ‘um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas’. As cabeças de Baleia e Graciliano também remontam às carcaças de animais que costumam figurar em paisagem de seca”, detalha Hana.
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